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Variações: plano aberto e plano fechado

O melhor ponto de vista que uma popstar pode oferecer é o da nuca, aquele ponto de vista que, na hora do palco, o público não vê com frequência — um ponto diametralmente oposto à face. É o caso da capa de evermore (2021), álbum da Taylor Swift, uma capa na qual ela aparece de costas com uma trança como penteado, os ombros cobertos pelo casaco e um borrão no plano de fundo — uma paisagem que lembra uma estação transitória, do outono para o inverno —, com a nuca, é claro, oculta. Mas ela de costas, ela ao avesso, produzindo o próprio contrário, é outra versão do mito de Madame Bovary, se fizermos uma leitura indisciplinada de evermore. E essa versão da mulher que está, no mundo, à mercê da fantasia ganha os contornos próprios na segunda faixa do álbum, champagne problems. Nela, vemos o ponto de vista de quem não consegue lidar com o amante, o parceiro que não pode salvar a mocinha, que, por sua vez, não consegue salvar a si mesma. Os problemas fúteis se revelam no refrão: “Because I dropped your hand while dancing/ Left you out there standing”. Ela seria, sabemos pela música, a noiva ideal, não fosse a insegurança. Ela não consegue lidar com a própria presença, sabemos, não consegue estar sob a própria luz, nem sob a própria sombra. Larga as mãos do amante no meio da dança. E outra faixa que, por sua contradição, pode ser uma chave de leitura para o álbum é gold rush. Nesse caso, vemos as variações do ouro, uma erva daninha que, quando mal utilizada, pode ser o pior dos mundos. A erva daninha é o amor que alguém pode oferecer a um parceiro — se mal utilizada, a duração do amor se liga à duração da faixa: três minutos e nove segundos, a segunda menor faixa do álbum, cuja média está mais ou menos entre os quatro minutos. A corrida do ouro, ela nos diz, leva ao fim do amor, e o fim é tão cintilante quanto o começo: “Gleaming, Twinkling/ Eyes like sinking ships/ On waters so inviting/ I almost jump in”. A popstar nos mostra as variações do amor. O brilho e a cor. A duração do amor, entretanto, tem a ver com a frequência na qual o amor se instala. O tempo do amor, em cada faixa do álbum, é um tempo próprio e se estende na medida em que o par faz a leitura das evidências que um deixa para o outro: o pormenor no corpo ou o pormenor no pensamento — a frequência com a qual as mãos se tocam, o modo de um arrastar o outro e fazer com que caminhem juntos pelo espaço vazio ou pelo espaço ocupado — às vezes, por uma multidão. O pormenor no pensamento, que pode se materializar através de algum sentido, seja a audição, seja o olfato, seja o paladar, seja a visão, seja o tato.

O pormenor, através de evermore, pode estar em alguns versos de cowboy like me — “Never wanted love/ Just a fancy car”, ouvimos numa faixa de quatro minutos e trinta e seis segundos. É o truque do amor: produzir, para os enlaçados, um espaço de ressonância no qual o amor ganha uma temporalidade própria, mesmo que, nessa temporalidade, o casal seja formado por dois bandidos, um par que tem interesses, sobretudo, materiais; a imagem de bandidos, aliás, está noutra faixa da discografia de Swift: uma faixa do álbum reputation (2017). Em Getaway Car, ela assume a figura de Bonnie Parker para, depois de uma desilusão amorosa, abandonar o parceiro, Clyde Barrow — “No, nothing good starts in a getaway car”. Aí o fato de cada faixa da discografia de Taylor Swift ser uma variação de uma faixa anterior, ou seja, ela se reescreve e se refaz com frequência (reproduz–se enquanto reformula um conjunto de mitos). Ela assume a si mesma como um objeto e dá continuidade a um exercício de autorreflexão. Por exemplo, o álbum anterior a evermore é, segundo a cantora, um irmão gêmeo. É o folklore (2020) — em cuja capa vemos a artista numa floresta. Vemos a variação da capa do evermore, mas não no pormenor. Vemos uma distância — a distância confortável para não revelar os detalhes: o corpo e, consequentemente, a mente. Só é possível, por um lado, ver a artista como parte de um todo (por outro lado, o plano fechado, que é o caso da capa de evermore, quando bem manipulado, ganha qualidade de plano aberto, que é o caso da capa de folklore — é como a duração da descrição do boné de Charles Bovary por Gustave Flaubert: “era uma dessas coisas complicadas, que reúnem elementos de chapéu de feltro, chapéu redondo, fez turco, gorro de peles, barrete de algodão, enfim, um desses pobres objetos cuja muda fealdade possui a mesma profundeza de expressão que o rosto de um idiota.”). 

A distância, melhor dizendo, a relação entre plano fechado e plano aberto é crucial para que a popstar se revele, primeiro, como um todo composicional e, em seguida, como um detalhe na paisagem — a nuca, mesmo oculta. Pois ela, a nuca — ou a indicação da nuca —, e o rosto fazem parte desse conjunto, são as linhas antipodais que se ligam. Mas, voltando ao evermore, ouvimos a ingenuidade do amor na faixa de abertura, willow. É a versão irreal do amor, uma vez que não ouvimos as impurezas de quem ama, não ouvimos a maneira como se ama o outro por si mesmo, sem os espelhos. Aí o fato de o par não se compreender: “The more that you say/ The less I know”. Ouvimos, nesse caso, a idealização do amor, o que pode soar tão-somente imaturo. Para ouvir as impurezas, é preciso, talvez, quebrar o espelho entre o par: não ver o outro como um igual, mas ver o outro através da opacidade — a comunicação com aquilo que não se compreende, com aquilo que não se vê através do espelho, mas aquilo que continua lá, até porque, para romper o narcisismo, é preciso assumir o próprio ponto de vista — mesmo que seja o ponto de vista do Narciso, que não se importa com a maneira pela qual se forma o reflexo, mesmo que seja o ponto de vista de quem se entregou à própria fantasia. Porque amar pode ser uma forma de não solucionar o conflito entre a opacidade e a transparência.

Por Luís Matheus Brito

Poeta e artista visual, mora em Aracaju/SE.

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